segunda-feira, 10 de outubro de 2011

1. Análise crítica e semântica do Decreto-Lei n.º 96/2011, de 21 de Setembro


Um novo poste de João Boaventura que se agradece


Como vem sendo norma consuetudinária, a cada novo governo constitucional cabe, dentro da respectiva cronologia, o desempenho do papel de jogador do Direito, ou o de reconstrutor e renovador das normas jurídicas do futuro Direito Desportivo, que ora nos interessa, e no pressuposto de que se trata de um sub-sistema integrado no sistema social global, contemplando as interacções jurídicas, ou os laços afectivos que devem ligar o actor legislador ao actor que joga dentro da sociedade civil desportiva, para que a razão jurídica transmita a racionalidade do mundo desportivo que objectivamente se propõe.

Isto para dizer que o modelo jurídico deve corresponder ao modelo sociológico, ou que ambos se devem justapor, para que a eficiência, a exclusividade e o dinamismo de ambos tenham reflexos no sistema desportivo. Da distinção entre o retrato jurídico e o retrato sociológico resulta uma luta de domínio entre ambos, porque à lógica jurídica contrapõe-se a lógica sociológica, e deste afrontamento resultam os efeitos que não se desejam, com prejuízo para o mundo do deporto. Daqui se depreende que a lógica jurídica do direito desportivo não deve sobrepor-se à lógica da sociologia desportiva, sob pena de as interacções comunicacionais entre o direito e os agentes desportivos saírem defraudadas.

Talvez se possa agora entender as razões do título do anterior post “O Direito Desportivo traído pela Sociologia”, cuja tradução simplista especifica que, pelo estudo da sociologia desportiva, se pode descortinar a desadaptação da estrutura normativa à realidade desportiva, por não corresponder às expectativas dos destinatários. È, de certa forma, um combate permanente que exige uma compreensão comum dos problemas que afectam o desporto, em todos os seus campos de actuação.

O duelo também se situa noutras áreas, como no trabalho de André-Jean Arnaut et Pierre-Yves Raccah, “Le droit trahi par la philosophie” (Bibliothèque du centre d’étude des systèmes politiques et juridiques de Rouen, 1977) que a editora espanhola LSJ (San Sebastian, 1990) traduziu para “El Derecho sin Máscara”, e os brasileiros, logicamente, como “O Direito traído pela filosofia” (S.A. Fabris, Porto-Alegre,  1991). Na mesma linha de pensamento André-Jean Arnaut publicaria mais tarde “Le droit trahi par la sociologie. Une pratique de l’histoire” (LGDJ, Paris, 1998), inspirado na asserção de Lawrence Friedman de que as duas disciplinas, a sociologia e a história, se podiam comparar a “dois barcos que se cruzam na noite”.

Da mesma forma o sistema educativo também foi traído pela sociologia quando Jean-Claude Passeron e Pierre Bourdieu publicaram “Les héritiers. Les étudiants et la culture”(1964), seguido da  “La reproduction. Éléments pour une théorie du système d’enseignement” (1970), denunciando as universidades como centros de reprodução da desigualdade, e que levaram ao Maio de 68, em Paris. Também aqui há uma relação de poder já que a sociologia da educação pode revelar as fraquezas do sistema educativo, ou do sistema jurídico que lhe dá suporte.

De uma forma simplista poder-se-á retratar esta relação de forças pela comparação literária quando  se considera que Corneille descreve os homens, não como eles são, mas como eles deveriam ser, enquanto Racine já os retratam tal como eles são. Se a comparação se permite, sem a forçar, dir-se-ia que o Corneille literário, seria o Corneille do direito desportivo que se permite impor a reestruturação do desporto, enquanto o Racine literário, o Racine da sociologia desportiva, porque corrige a reestruturação do desporto que não corresponda aos desejos do destinatário.

Estamos na presença de dois poderes, sociológico e jurídico, incomunicáveis, a que acresce o poder do Estado que, utilizando o jurídico, lhe confere um duplo poder. E é deste duplo poder que dependeu todo o desporto do passado, como irá depender o do presente e o do futuro.

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